segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Noite no cais


O som da calmaria o inspirava a criar as mais belas composições no violão — lógico que aquele sorriso lindo que ela lhe mostrava, o inspirava mais ainda. Ela olhava com atenção o movimento que ele fazia enquanto seus dedos experimentavam cada combinação possível de acordes, e o brilho em seu olhar aumentava ao perceber o quanto ela o amava. Joshua vez uma breve pausa para poder beijar-lhe a testa, fazendo com que Lize se arrepiasse. Ela lhe tomou o violão de suas mãos, e então ele se deitou, ouvindo o som das ondas naquela noite quente, enquanto esperava curioso por qual música ela tocaria, apesar que isto não importasse muito... mesmo se ela tocasse tudo errado, seria a melhor música do mundo, somente por ser tocada por aquelas doces mãos.

— Vou modificar um pouquinho a música, mas creio que ficará bem melhor do jeito que cantarei.
— Tenho certeza de que vou adorar. – E ele ia mesmo.
— “Aquela noite no cais, não quero que acabe jamais, tocando violão pra você...”

Ele fechou os olhos, respirou fundo sentindo o perfume que ela passara mais cedo, guardando cada minuto daquele momento que se recordará para sempre.

(Amar)elo


— Eu te amo.
— Também te amo.
Folhas amareladas pela ação da mudança de estação caíam numa sincronia, como se bailassem para o céu contemplar-lhes. A atuação da brisa de outono estava saindo como a natureza planejara, a fim de manter a chama do amor acesa na pequena caixinha no peito daqueles dois grandes amantes.

Os passos marcavam a neve, enquanto a mesma penetrava no coração da garota apaixonada, porém com problemas. Problemas que somente a lua conhece, pois foi a única que compartilhou as noites afogadas em lágrimas. Os punhos cerrados, tentando reunir toda a coragem que havia dentro dela – se é que havia ainda. Como a mãe dela dissera mais cedo: “Você merece coisa melhor, como será teu futuro com alguém que usa drogas e não faz nenhum esforço para sair dessa? Sei que você o ama, mas quantas vezes ele te maltratou? Você tem que se amar em primeiro lugar.”
Hoje ele não usara as drogas, ainda. Precisava aproveitar que o sol nem havia nascido ainda e ele provavelmente estaria dormindo, para dar-lhe a notícia do término do namoro. Ela odiava admitir, mas sua mãe estava certa. Ele não tem conserto. Ele não quer ajuda. Mas ela quer ser feliz, e irá. Ela entrou em seu apartamento – a chave estava sob o extintor no corredor, esconderijo que ele usava desde que fora morar ali.
— Dan? Bom dia...

— Oi meu amor! Que bom acordar e ver teu rosto.

— Mas hoje será o último dia. – Ela tentava esconder toda a tristeza de seu coração quebrado.
— O quê? Você está terminando comigo? - Dan sentou-se rápido, dava para ver em seus olhos que ele não acreditava no que estava ouvindo.
— Sim...
— Eu te amo! – Sussurrou ele.
— Eu também te amei, infelizmente. – Ele realmente acreditara na frieza em que ela depositara nas palavras.
Ele abaixou os olhos, e chorou silenciosamente, enquanto ela segurava o choro e descia as escadas, sabendo que ele realmente a amava.

Os dias foram novamente invadidos pelo amarelo. Dan caminhava em direção ao trabalho, porém seu caminho foi interrompido. Não, não era a abstinência mais uma vez... decidira largar de uma vez as drogas, antes que perdesse algo mais que fosse importante para ele. Não tanto quanto Samantha, porém ainda importante. Aliás, ele parou em frente a cafeteria e ficou a observando enquanto ela tomava café, enquanto uma lágrima escorria por suas bochechas, escrevendo em sua face a palavra ‘saudade’.

Ghost Flowers


A pequena criança parou abruptamente de correr ao se deparar com a pior cena que vira em sua (curta) vida, levou a mão à boca, enquanto seus olhos pareciam que iam pular de sua face. Minutos antes, ela corria livremente pelo campo florido, sorrindo para o céu azul, e não se preocupava com absolutamente nada — como é normal de uma criança. Mas ao chegar ao topo daquela colina, chegara (sem saber) no cemitério das estrelas. As flores fantasmas cobriam os corpos dilacerados pelo suicídio da felicidade. A leve brisa de primavera fazia com que asas quebradas balançassem calmamente, esmagando algumas daquelas flores cinza. Algo brilhou intensamente assim que ela começou a dar um passo para trás, boquiaberta com a situação em que se encontrava, fazendo com que ela fechasse seus doces olhos verdes rapidamente, num reflexo involuntário de proteção (ao coração). Assim que recuperara a calma, decidiu abrir lentamente seus olhos, e assim que o fez, percebera que estava pisando em cima de algo brilhante de uma cor que não existia na terra. Sua mão ardeu por um momento ao tocar naquele objeto, e, analisando-o um pouco melhor, descobriu que se tratava de uma auréola, mas ela estava quebrada. Colocou-a delicadamente no bolso do seu jeans novinho, pensando em levar para casa e mostrar para sua mamãe. Virou-se para começar a correr no sentido do chalé em que ela morava, e instantaneamente uma ventania muito forte começou. Assustada, correu o mais rápido que pôde, abriu o portão de madeira e foi direto para a cozinha, onde uma mulher ruiva fazia o almoço.
— Mamãe, mamãe! Eu tava correndo pelo campo e de repente encontrei um lugar muito feio, que cheirava a morte, infelicidade e maldade!!! Quer ver, eu trouxe uma prova de que é verdade!
— Lenna, acalme-se! Parece que você vai respirar todo o ar da casa! Qual é a tralha que você achou dessa vez?
Lenna enfiou a mão no bolso, mas não encontrou nada ali. A única coisa que havia ali era uma espécie de pó muito fino.
— Helenna, quantas vezes eu já te disse pra não colocar terra nos bolsos?
— Desculpe mamãe... — A criança abaixou a cabeça e foi para seu quarto, pensando se mais uma vez realmente imaginara tudo aquilo.

Esse tal de amor

— Posso sentar-me?
— O bar não é meu, a cadeira não é minha. Faça o que quiser.

Ele puxou uma cadeira e sentou-se, observando-a atentamente.

— Complicado, não é?
— O quê?
— Esse tal de amor.
— Não sei.
— Não sabe?
— É.
— Se eu fosse o cara que você gosta, não te deixaria derrubar lágrimas.
— O amor não faz mais parte da minha vida. E você nem me conhece.
— Não preciso conhecer para perceber que você está sofrendo.
— Você também sofre?
— Não sei.
— Não sabe?
— É.

Ela revirou os olhos ironicamente.

— Agora a pouco conheci uma garota que, creio eu, está sofrendo mais do que eu. Mas ela é forte, e eu gosto quando ela segura minha mão.
— Ela nem tocou em ti.
— Mas
irá.

Ele sorriu, levantou-se, e sumiu em meio a multidão que assistia a um show qualquer. A garota abaixou a cabeça e seus olhos se encheram de lágrimas novamente assim que a banda começou a tocar uma música romântica.

— Me concede uma dança? Seria uma honra dançar com a senhorita.

Seus olhos úmidos encontraram novamente o sorriso que vira a pouco, só que desta vez havia uma mão estendida em sua direção, esperando pela sua.

— Claro.

Ela sorriu.

domingo, 9 de outubro de 2011



Corpos anoréxicos mexiam-se lentamente ao som de uma música que realmente não pertencia àquele ambiente - talvez fosse John Lennon. As máscaras de cristais rasgavam sua pele, fazendo com que o sangue escorresse por seus pescoços e manchassem seus trajes tão apertados ao corpo, que era possível ver nitidamente suas costelas. As estrelas choravam, mas não derramavam as lágrimas que não tinham, choravam arte sobre a dança demoníaca. A atmosfera pesada que os convidados daquele baile de máscaras emanavam, faziam com que o oxigênio fosse consumido pelos anjos caídos que ali depositavam suas auréolas vencidas, suas asas quebradas. O ápice da música atingira em cheio o centro de seus corações, arrancando os cristais de sua face, o fogo brilhando no local onde eram para estar seus olhos. As maçãs do rosto tão marcadas pela extrema magreza, que a aparência cadavérica lhes revelava verdadeiros demônios. Talvez não demônios, mas também certamente não eram humanos. A humanidade é egoísta, gananciosa e orgulhosa. Eles eram vaidosos, doces e belos - uma beleza excêntrica, porém ainda bela. O fogo se apagava, as estrelas ainda derramavam arte e a escuridão tomara os buracos dos olhos, de adultos à crianças, assim que a canção parou, trazendo à tona a simplicidade das trevas dominada e comandada pelas estrelas cadentes de fogo. Do demônio.
Asas quebradas refletem o choro descontrolado das flores cinzas - flores fantasmas. Jogam-nas lá de cima, de trás das nuvens, são inúteis, pobres auréolas trincadas pelo ódio ao amor, trincadas pela risada de uma criança morta. Anjos caídos dançam no ritmo das chamas do inferno, a música vinha do próprio Diabo, sua mais bela canção para ninar eternamente. Suas almas perdidas são sopradas pelo riso maléfico das estrelas negras. As gotículas lacrimosas eram formadas por cacos de vidro, banhados pelo sangue poluído pelo pecado, fechando-lhes os olhos de cristal em um doce e eterno pesadelo psicológico.

Ossadas mexiam-se em um ritmo constante, balançando seus quadris como se a lua tivesse chorado a noite inteira. Ossos para todos olhos olhares de fogo. Fogo em todos os sorrisos patéticos, risadas emitiam sons de podridão, sons irrecuperáveis, que se perdiam no infinito, nas palavras das estrelas cadentes. O magma lhes escorria pela face, até alcançar-lhes os lábios e escurecer-lhes as presas impregnadas de veneno. A respiração inexistente, fazia com que as cortinas intrapulmonares bailassem ao bater do coração já morto há séculos. Corpos beijados pela morte e desejados pelas trevas, agradeciam à Beethoven pela bela sinfonia.

Lágrimas de sangue


Suas asas batiam conforme o vento passava entre elas, entre seus sentimentos feridos por uma simples mortal. Mas não, ele não chorava, ao invés disso, ele utilizava este tempo para planejar sua doce vingança, a sensação mais saborosa. Podia ver-se refletido em seus olhos a tortura desejada por ele, o medo na face de sua bela amada, que o rejeitou. Suas asas enegrecidas, asas de morcego expressavam o tempo em cada batida. Quem choraria esta noite não seria ele. A destruidora de corações, hoje antes de ir dormir, sonharia acordada o pior pesadelo - o amor não-correspondido, a vingança de um anjo com auréolas quebradas, um anjo caído. Hoje ela chorará lágrimas de sangue.
Seu olhar percorria cada milímetro do céu alaranjado pelo pôr-do-sol. O oceano de seus olhos misturava-se com o azul das águas em que sua canoa dormia silenciosamente sobre as pequenas ondas que o faziam balançar conforme o movimento da respiração da mãe natureza. Ele talvez pudesse até tocá-la, talvez até mergulhar em seus braços, permanecer ali em seu aconchego para sempre. Ela lhe sussurrava delicadamente ao pé do seu ouvido, fazendo com que ele se arrepiasse a cada palavra que saía dos mais belos lábios.

Seus olhos violetas emitiam um rugido, tremendo a lua congelada. Os cristais de sangue quebraram-se sob os pés de vidro, que bailavam em um ritmo incendiante. As letras impressas em suas impressões digitais revelavam o coração (o que é isso?) escondido pela máscara dourada. A pele queimada pelos sorrisos das estrelas arrastavam-se com o sacolejar de seus ossos, seus corpos cadavéricos, engolindo-os pouco a pouco, assm como uma criança engole um leão. Os isqueiros liberavam a liberdade, o gelo para acender seus charutos imaginários, equilibrados entre os lábios docemente coloridos. E a negridão em seus olhos observavam calmamente cada borboleta que subia das trevas.

Pesadelo?


Suas mãos tremiam descontroladamente, mas a faca permanecia firmemente presa entre seus dedos, sendo pressionada com uma força que ele mesmo desconhecia. O sangue escorria pela superfície prateada e gotejava sobre uma poça formada sobre o carpete velho da sala de jantar. Dois olhos na escuridão refletiam o medo da pequena criança, que encolhida no canto do cômodo, aguardava, com lágrimas rolando silenciosamente pelo seu rosto, o momento de sua morte. Soluçava alto cada vez que recordava a cena que vira alguns minutos atrás: seus pais estirados sem vida sobre a cama encharcada de sangue. Agora seu olhar estava fixo naquele homem de vestes pretas e máscara que segurava uma faca que provavelmente assassinara sua família.
A tábua do assoalho rangeu assim que o sujeito mal encarado deu um passo em direção ao garoto, que se encolheu mais um pouco - mesmo que isso parecesse impossível de acontecer. Os olhos que há pouco brilhavam, desapareceram em meio ao breu. O assassino aproximou-se lentamente do menino, até que pudesse sentir sua respiração ofegante. O garoto tremeu em um ligeiro calafrio, e já esperando há algum tempo, decidiu abrir os olhos para verificar se o homem ainda estava por ali. Assim que suas pálpebras se abriram, a luz invadiu sua mente, fazendo com que ele piscasse rapidamente para que tudo entrasse novamente em foco. Ele estava de volta em seu quarto e o sol brilhava alto num céu sem nuvens. Calçou suas pantufas ao pé da cama e rumou para o corredor, rezando para que tudo tivesse sido apenas um sonho ruim. Parou em frente a porta de madeira, onde ficava o quarto de seus pais.
— Mamãe? - sua voz saiu rouca e trêmula. - Papai?
O silêncio foi tudo que obteve como resposta. Uma gota de sangue pingou da maçaneta, enquanto lágrimas brotavam mais uma vez em seus doces olhos.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Senti que iria vomitar e corri para o banheiro, mal sentindo meus pés tropeçarem ao tentar subir às cegas a escada que levava ao banheiro. Não recordo-me de ter aberto a porta, ou mesmo de ter acendido a luz, mas lembro-me muito bem de quando apoiei-me na pia, sentindo minha garganta arder conforme tudo que havia em meu estômago começava a descer pelo encanamento.
O espelho a minha frente refletia uma garota de cabelos loiros, lábios brancos, pele pálida e olheiras fortes abaixo de seus olhos. Esta garota tinha um olhar triste, podia-se ler ali um pedido de socorro. Era um olhar profundo, e dentro deste olhar eu vi... vi tudo o que não queria ver. Vi a noite passada, em que fiquei bêbada e drogada enquanto ouvia rock n' roll na casa da minha amiga. Lembrei-me do pé na bunda que levei da primeira pessoa que realmente amei. Lembrei-me de quando fui pular a janela no meu quarto para poder ir transar com um cara qualquer, machucando minha perna ao passar por um arbusto cheio de espinhos. E então tudo que eu conseguia ver era a escuridão, e tudo que eu podia ouvir era um grito ao longe.
(...)
Abri meus olhos e enxerguei novamente o banheiro. O espelho estava embaçado, e rabiscado nele havia um alerta: "Você não pode fugir."
— O que aconteceu? - ouvi a voz do meu irmão mais novo me enchendo o saco.
— Nada, cai fora daqui! Não sabe bater não, pirralho?
— A porta estava aberta... você... você tá bem? - pude ver o medo em seus olhos. O olhar revela muita coisa.
— Estou, agora vaza.
— É que você tava escrevendo no espelho e seus olhos estavam... estavam totalmente negros. Eu fiquei preocupado.
Um arrepio percorreu meu corpo e pude ouvir um sussurro em meu ouvido: "Viu só como você não pode fugir de mim?"

Rabisquei o sol encoberto pela poeira dos meus olhos, fiquei imóvel, esperando que a brisa chegasse e retirasse todo o ódio grudado em minha pele. O que veio por fim, foi a tempestade, molhando minhas lágrimas, secando minha boca. O arco íris refletia nos cacos quebrados do espelho que esmurrei com tanta raiva, fazendo com que o sangue vermelho e viscoso escorresse por entre meus dedos, causando uma tremenda bagunça sobre a grama tão verde que chegava a ofuscar minha visão. Minhas pernas tremiam e eu desconfiei que elas não poderiam mais me sustentar em pé por muito tempo. O suor em minhas palmas misturavam-se ao sangue já seco, penetrando por debaixo das unhas, deixando um efeito aterrorizante e ao mesmo tempo pacífico em uma aparência tão necessitada de amor.

quinta-feira, 28 de julho de 2011


Meus pés eram obrigados a sustentar meu corpo enquanto o ar gelado me abraçava num longo e frio romance. O aroma de café bailava conforme o vento e invadia minhas narinas, fazendo com que meu estômago começasse a reclamar por não ter feito minha refeição matinal. As pessoas usavam sobretudos, botas e gorros, seus olhos acompanhavam minha caminhada com curiosidade, até porque minha vestimenta não era muito adequada para um dia de inverno – eu trajava somente uma camiseta surrada sobre o lingerie. A neve agora cumprimentava meu sangue, dizia olá para meu coração, fazendo com que meus olhos lacrimejassem, quase não suportando tanto frio. Meu único pensamento era lhe encontrar, saber por que você não estava ao meu lado na cama quando despertei esta manhã. Por que você não tinha nem ido para casa após o trabalho. Senti meu pé aquecer-se por um breve instante, eu havia pisado em algo ligeiramente quente. Olhei para baixo e vi o que proporcionava tão agradável temperatura a minha pele. Um copo de café estava jogado na neve, espalhando uma mancha escura em meio a todo aquele branco que tampava totalmente o solo naquela cidade pacata. Ao lado do café derramado, um pouco molhado, havia um jornal do dia que trazia a notícia principal estampada logo na primeira página. “Neve causa acidente fatal — motorista não consegue controlar seu carro, que derrapa e cai no precipício”, trazendo logo abaixo a foto de um carro completamente em chamas. Em meio ao emaranhado de palavras, encontrei qual era o modelo do carro – o mesmo que deveria estar na garagem de casa. Meus olhos desceram automaticamente até o final da página, onde se encontrava o nome da vítima – o mesmo nome da pessoa que deveria estar em casa, desde ontem à noite. Por fim minhas pernas se cansaram de me sustentar, dobrando-se e fazendo-me cair no meio da rua. O som de freios sendo acionados chegaram aos meus ouvidos, porém meus olhos não enxergavam nada. Senti uma pancada violenta, e a partir daí não recordo-me de mais nada. Acordei aqui, neste colchão de nuvens e lençóis de céu, ao lado de quem eu pensei ter perdido para sempre.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Pedra ou pluma

Pois justo quando quero me sentir pluma, me sinto pedra.
O vento sopra, assopra, assobia, mas não me leva, não me sequestra.
Permaneço imóvel, intocada, imutável.
Nenhum sentimento me atinge, sou a pedra no meio do caminho, causando desvios.
Mas sempre há alguém que tromba, tropeça, cai sobre mim - sem pedir desculpas, sem pedir licença.
Chutam-me, gostariam que eu me retirasse, que facilitasse a passagem.
Então, quando decido ser pedra, uma brisa suave me toca, me carrega para além do horizonte, além do mundo.
Silêncio e calmaria, talvez agora eu preferisse a agitação que antes me aturdia.
Ou talvez apenas seu olhar, sua mão, seu coração já me bastasse.

Eis que sua ignorância me assombra, me compõe. Eis o pequeno, doce e gentil garoto que cresceu. Passou por uma metamorfose - mas não, ele não virou uma borboleta. Sua transformação foi em algo que, antigamente era temido, era abominado, e hoje não é nada mais do que idolatrado. Pobre garoto, querido diabo. Sua pele queima, seus olhos faíscam e seu coração é pura cinza. Beija-me a bochecha com seus lábios proibidos, vê minha alma, sorri para meus pecados e suga-me o fôlego.

sábado, 16 de julho de 2011


Você é forte, eu sei que é. Quantas vezes você já não segurou lágrimas, apenas para não demonstrar sua fraqueza? Quantas vezes você molhou seu travesseiro, e adormeceu enquanto chorava sem ninguém por perto? Quantas vezes você fingiu que estava tudo bem, para não preocupar quem te ama? Quantas vezes você colocou um sorriso no rosto e foi ajudar quem precisava de você? Quantas vezes você descontou sua raiva, seu medo em você mesmo, apenas para não magoar alguém importante para ti? Quantas vezes você sentiu culpa por ter dito palavras que machucaram alguém? Quantas vezes você perdoou a quem te machucou com palavras? Quantas vezes você escolheu continuar a viver do que desistir de tudo? Eu sei como você se sente. Eu sou forte, você é forte. Apenas continue em frente, você tem uma grande chance de tropeçar em algo maravilhoso.

Fantasmas de mim mesma


Não me assombre mais. Apenas me deixe em paz e leve as lembranças com você. Os fantasmas do meu passado não poderão mais estar presente no meu futuro. Pois o peso que carrego em minhas costas é grande, e invade a alma de um ser que não é tão forte assim. Quem sabe as coisas que digo, já não sou mais eu quem me comanda, sou apenas uma propaganda. Uma propaganda comandada pelo assombro, pelo o que o mundo quer que eu seja, que eu mostre que eu não sou assim. O medo de perder o único motivo do meu sorriso, o motivo pelo que eu ainda estou de pé, é o que me domina, é o que me faz não perder a cabeça. As marcas das trevas estão presente em meus pulsos, em minha garganta sem voz, em meu corpo sem controle. Apenas por não saber o que fazer, não olho nem para trás, com medo de mim mesma. Apenas esperando que você segure minha mão, que me mostre a luz e me salve de cair neste abismo.

sábado, 16 de abril de 2011

Fome

Eu podia sentir seus dentes penetrando cada vez mais fundo em meu pescoço, sugando meu sangue. Eu sentia suas mãos geladas, sem vida, segurando minha cintura, e era isso o que me mantia em pé, pois minhas forças estavam indo embora junto com meu sangue. Uma ardência começava a me incomodar, por todo meu corpo, e um desejo insaciável de morte tomou conta de mim. Até tudo escurecer. Tudo estava calmo demais, silencioso demais. Algo estava muito estranho ali. Será que eu tinha morrido? De repente a ardência voltou com muito mais intensidade do que antes, trazendo a dor consigo. Minha garganta queimava, anseava por algo que eu não sabia o que era. Não sei por quanto tempo eu fiquei assim, mas chegou um momento em que tudo cessou. Pude ouvir uma movimentação a minha volta e eu fiquei em dúvida se arriscava abrir os olhos ou continuava em minha paz mental. Achei a segunda opção muito egoísta, então resolvi abrir os olhos. Meu estômago roncou alto, implorando por comida... Não, não era comida o que ele queria. Ele queria sangue. Mas fui mantida no lugar por dois pares de olhos profundos, que me encaravam e por uma voz aveludada pela qual eu viveria a eternidade.
— Bem-vinda a sua nova vida.

Primavera rasgada





A revoada de pássaros negros tapou os raios do sol por alguns instantes, formando uma extensa sombra sobre o campo florido, onde as marcas deixadas na grama amassada traziam à tona as lembranças de um passado recente. Um gato malhado ainda brincava por ali, perseguindo graciosamente uma borboleta azul aniz, mesmo sabendo que não alcançaria com suas patas tão curtas, ainda assim continuava exibindo sua bela pelagem. O som da natureza invadia o ar sem pedir permissão, as conversas dos animais se misturavam entre a relva, cigarras, sapos, grilos e talvez até leões. A brisa quente de primavera chegou de repente, balançando as folhas, sacudindo os galhos, revelando segredos. Algumas pétalas se soltaram e foram em direção ao gato, fazendo-o parar para comtemplar toda aquela beleza. Mas seus olhos verdes não enxergaram somente as pétalas, tampouco seu olfato não sentiu apenas o doce aroma das flores... havia algo a mais. A brisa trouxe com ela quatro pedaços de papel, que tocaram o solo lentamente, assim que o vento se despediu com um beijo no rosto. Eles pousaram na posição certa, formando o que antes costumava ser, antes de ser rasgada. Uma história rasgada, uma vida rasgada, um amor rasgado. Uma fotografia rasgada e manchada com sangue.

quarta-feira, 2 de março de 2011

A Possessão de Giorge


Era terça-feira, as fortes gotas de chuva batiam ritmadamente na janela, como se pedissem permissão para entrar. Elisabeth estava sentada em sua poltrona, lembrando de seu falecido marido. O ar de preocupação surgiu quando avistou Giorge descendo as escadas. As roupas batidas e sujas revelavam que ele não as trocava já há algum tempo, o andar cabisbaixo e o silêncio o acompanhavam nestes últimos meses. Elisabeth caminhou até ele, que a ignorou e andou até a janela, onde ficou parado com o olhar vidrado. Marcas roxas estavam expostas em seus braços, e provavelmente haveriam mais sob suas vestes.
— Filho... o que está havendo? Você precisa se alimentar, e também dormir. Desde que seu pai... bom, desde o ocorrido, você nem sai mais de seu quarto. – Giorge voltou-se para ela, lançando-lhe um olhar profundo, como se quisesse gritar até explodir. Então começou a caminhar novamente em direção as escadas, indo para seu quarto.
Por volta de meia-noite, Elisabeth pôde ouvir sons vindos do andar de cima. Ela caminhou suavemente pelas escadas e pelo corredor, que exibia fotografias de um passado não muito distante, quando uma bela e feliz família habitava aquela casa. Os ruídos vinham do quarto de Giorge. Antes de abrir a porta, ela bateu para evitar incomodar o filho.
— Giorge, querido, o que está havendo? – Não houve resposta, mas as batidas continuavam. Preocupada, ela não esperou mais e abriu a porta.
Por alguns instantes, Elisabeth achou que iria desmaiar com o que estava vendo. No meio do quarto fora rabiscado no chão um círculo, e bem no centro encontrava-se Gulliver – o gato da família. Ele estava irreconhecível: seus órgãos internos foram arracados por um corte na barriga e seu cérebro estava sobre o travesseiro, na cama de Giorge. O rapaz estava completamente nu, com as mãos na parede e batendo a cabeça, já toda ensangüentada, com toda sua força no concreto.
— Eu sou Tchort, e não existe ninguém mais poderoso que eu. – Ele sussurrava.
— Giorge! Pare com isso, pelo amor de Deus! – As batidas cessaram, e então o garoto fitou sua mãe nos olhos, com um sorriso de deboche e com uma voz que não lhe pertencia, falou:
— Deus?
Num movimento rápido, Giorge pegou a faca que estava ao lado de Gulliver e enfiou no coração de sua mãe, fazendo-a arregalar os olhos e então dormir para sempre. Após isso, Giorge cerrou os olhos e caiu de joelhos. Seus olhos estavam vermelhos, e seus lábios estavam brancos.
— Este corpo pertence a Tchort! – A voz misteriosa saiu mais uma vez da boca de Giorge, e em seguida a lâmina que matara Elisabeth, cortara a garganta de Giorge. O quarto era só vermelho. Era só sangue.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Vilão sem herói.



Minha mão ardia enquanto eu lhe socava o rosto, concentrando toda a minha raiva na força em que eu depositava contra sua linda pele. O sangue lhe escorria pela boca e pelas narinas. Ele já não reagia. Finalmente eu iria vencer, pela primeira vez na história da cidade, o mal venceria o bem. Quando enfim saí do meu transe, eu segurava o corpo sem vida do super herói. Olhares amedrontados me acompanharam enquanto eu voava e dava vivas a caminho do meu esconderijo – que finalmente não precisaria mais ser secreto, sem nenhum herói para interromper meus planos de dominar a cidade.

A riqueza, a comida, as mulheres, a “falsa felicidade”. Eu já não conseguia dormir e relaxar. Não conseguia comer um pêssego e saboreá-lo. Eu não estava completo. Eu estava sem equilíbrio. Eu não via mais graça em viver naquela cidade.

Minha pequena mala amarela foi o suficiente para guardar o que eu levaria comigo. Eu iria em busca da minha própria salvadora, da minha heroína.

Kriptonita



Como é bom voltar a sentir a sensação de que meu estômago está sendo invadido por borboletas. Justo eu, que pensei que havia matado a todas que um dia estiveram ali. O conforto com um simples olhar, uma palavra dita no momento certo, um sorriso que ilumina. Ao deitar a noite na minha cama, fechar os olhos e lembrar do dia ao seu lado, enquanto um discreto e singelo sorriso toma formas em minha face, trazendo meus sentimentos à mostra para a escuridão do meu quarto.
Esquecer dos problemas, das discussões. Entrar em um outro mundo, uma outra dimensão quando estou ao seu lado. Deixar de lado todas as preocupações. Me importar somente com você. Talvez até mesmo só exista apenas nós dois no mundo inteiro, e temos ele somente para nós.
O assunto flui como o vôo plano de uma coruja, tomando toda minha atenção. O tempo rouba as horas de mim, e a brisa trás seu cheiro até mim, entrando por minhas narinas e permanecendo intacto no meu cérebro, trazendo a saudade logo após o beijo de despedida.
A perda de forças nas pernas, suspiros. Minha kriptonita.

Todos os cães merecem o céu




O sangue atravessa minhas patas enquanto estou parada ao lado do meu corpo – completamente esmagado e impossível de identificar-me – morto embaixo do pneu dianteiro do carro. Os olhos azuis tão doces e tão vivos da criança ao lado da rua, choravam por mim, enquanto segurava a mão de sua mamãe bem apertado. Ah, garotinho de sorte, ter uma mãe para acalma-lo neste momento, não ser como eu, ter que ver a própria mãe ser morta à pancadas pelo cruel dono com sua foice, enquanto eu e meus irmãos tentávamos fugir das garras daquele monstro. Mas eles não tiveram a minha sorte. Que agora eu acho que não era bem... sorte.
Passei por baixo da cerca, raspando as minhas costas na madeira e minha barriga se enchendo de terra úmida. Sentei-me na calçada, para recuperar o fôlego e decidir para onde eu iria, pensei em seguir um rumo indeterminado, mas seria agir por impulso, coisa que eu evito fazer. Alguém me observava, eu podia sentir. Dei uma olhada ao meu redor, para achar o dono daquele sentimento tão intenso, e pude vê-lo, no outro lado da rua. Eu poderia talvez até ouvir os batimentos de seu delicado coração. Um garotinho de olhos azuis me esperava de braços abertos, com amor fluindo por sua respiração. Eu não pensaria duas vezes para correr até ele, e ter uma vida feliz, como sempre desejei. Mas não passei dos três passos. Ouvi a freiada brusca e senti uma dor intensa, porém passou muito rápido.
Agora estou aqui, ainda sem rumo, observando o garoto debulhar-se em lágrimas ao lado do meu corpo deformado – esmagado.
— Venha Jeff – uma voz vinda do céu disse com uma voz decidida. Então senti minha alma ser levada pelo vento, cada vez mais para cima.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011


Olhe, não fique assim não, vai passar. Eu sei que dói. É horrível. Eu sei que parece que você não vai agüentar, mas aguenta. Sei que parece que vai explodir, mas não explode. Sei que dá vontade de abrir um zíper nas costas e sair do corpo porque dentro da gente, nesse momento, não é um bom lugar para se estar. (Fernando Pessoa escreveu, num momento parecido, "hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu"). Dor é assim mesmo, arde, depois passa. Que bom. Aliás, a vida é assim: arde, depois passa. Que pena. A gente acha que não vai agüentar, mas agüenta: as dores da vida. Pense assim: agora tá insuportável, agora você queria abrir o zíper, sair do corpo, encarnar numa samambaia, virar um paralelepípedo ou qualquer coisa inanimada, anestesiada, silenciosa. Mas agora já passou. Agora já é dez segundos depois da frase passada. Sua dor já é dez segundos menor do que duas linhas atrás.

Você acha que não, porque esperar a dor passar é como olhar um transatlântico no horizonte estando na praia. Ele parece parado, mas aí você desvia o olho, toma um picolé, lê uma revista, dá um pulo no mar e quando vai ver o barco já tá lá longe. A sua dor agora, essa fogueira na sua barriga, essa sensação de que pegaram sua traquéia e seu estômago e torceram como uma toalha molhada, isso tudo – é difícil de acreditar, eu sei – vai virar só uma memória, um pequeno ponto negro diluído num imenso mar de memórias. Levante-se daí, vá tomar um picolé, ler uma revista, dar um pulo no mar. Quando você for ver, passou.

Agora não dá mesmo pra ser feliz. É impossível. Mas quem disse que a gente deve ser feliz sempre? Isso é bobagem. Como cantou Vinícius: "É melhor viver do que ser feliz". Porque pra viver de verdade a gente tem que quebrar a cara. Tem que tentar e não conseguir. Achar que vai dar e ver que não deu. Querer muito e não alcançar. Ter e perder.

Tem que ter coragem de olhar no fundo dos olhos de alguém que a gente ama e dizer uma coisa terrível, mas que tem que ser dita. Tem que ter coragem de olhar no fundo dos olhos de alguém que a gente ama e ouvir uma coisa terrível, que tem que ser ouvida. A vida é incontornável. A gente perde, leva porrada, é passado pra trás, cai. Dói, ai, eu sei como dói. Mas passa.

Tá vendo a felicidade ali na frente? Não, você não tá vendo, porque tem uma montanha de dor na frente. Continue andando. Você vai subir, vai sentir frio lá em cima, cansaço. Vai querer desistir, mas não vai desistir, porque você é forte e porque depois do topo a montanha começa a diminuir e o unico jeito de deixá-la pra trás é continuar andando.
Você vai ser feliz

Tá vendo essa dor que agora samba no seu peito de salto de agulha? Você ainda vai olhá-la no fundo dos olhos e rir da cara dela. Juro que tô falando a verdade. Eu não minto. Vai passar.


Escrito por: Antônio Prada.
Achei foda demais, e postei.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Perdoe-me por estar errada


Seus olhos negros tiravam minha concentração, eu não conseguia terminar de arrumar as roupas na mala enquanto ele me fitava daquele jeito acusador. Eu não tinha culpa, era uma viagem de trabalho e se eu não fosse, perderia o emprego. Antes tivesse ouvido Matt.
— Algo está errado Andie, eu posso sentir. – Matt era muito supersticioso, mas dessa vez ele estava completamente certo, e eu odeio admitir isso. Por minha culpa, agora ele está chorando. Eu posso o ver daqui. Posso ver seus olhos sem o brilho de anteontem de manhã, seu sorriso sem a felicidade estampada, e as lágrimas que cortavam sua linda pele. Mas como eu sou teimosa, fui do mesmo jeito, não podia perder um emprego tão bom como aquele.
Terminei de arrumar as malas às 13:30h. Meu avião partiria às 15:00h, então Matt não poderia me acompanhar até o aeroporto, pois Geovanna – nossa linda filha, fruto desse lindo amor – chegaria da escolinha. Eu não poderia me despedir dela, então deixei um presente, uma boneca para ser exata, pois era o que ela mais gostava. Me despedi de Matt e então parti. Às 14:00h eu já estava no carro, rumando para meu ponto de partida – aonde eu nunca chegaria.
Ao parar em um semáforo, senti um arrepio e então um homem de preto parou ao lado do carro, com uma arma apontada para mim. A primeira coisa que veio à minha cabeça foi Geovanna e Matt.

— Saia do carro, agora, ou eu vou atirar! – O homem gritava com uma voz rouca. Saí do carro, com o pensamento em minha família. Pensei que o pesadelo acabaria logo, mas mais uma vez eu estava errada. O homem não estava sozinho. Seu companheiro me agarrou e me jogou no banco de trás do meu próprio carro, e sentou do meu lado, me deixando sob a mira de sua arma, enquanto o primeiro cara dirigia à toda, furando todos os sinais e quebrando todas as regras.
Fui vendada, então não sei direito aonde estive. Só sei que eu não gostaria de ter estado ali. Havia ratos e baratas por todo canto, eu sentia eles passarem sobre meus pés amarrados à cadeira. Então o pano que tapava meus olhos, foi removido, e uma luz forte me fez ficar desnorteada. Logo, tudo entrou em foco, e pude ver um par de olhos – tristes – me observando.
— Você é feliz? – Tentei falar, mas eu tinha sido amordaçada, então balancei a cabeça afirmativamente.

— E para conseguir tal fato você precisou destruir uma vida, certo? – Fiquei confusa, “destruir uma vida”? O que ela queria dizer com isso? Balancei negativamente a cabeça.

— ERRADO! – Senti uma pancada por trás da minha cabeça, e tudo escureceu.

Após algum tempo, eu acordei, e eu estava livre...? Olhei ao meu redor, e não avistei ninguém. Espere! Havia algo jogado dentro da lata de lixo, beirando à rua, pois ela não fechava direito. Era um beco, onde ratos e baratas faziam a festa. Mas eles não podiam mais me tocar... eles passavam através de mim. Examinei a lata. Havia sangue escorrendo, algumas moscas e um cheiro desagradável. Levei a mão para abrir a lata, mas ouvi um barulho, então um cara vestido com uma roupa laranjada entrou no beco e pegou a lata.

— Nossa, que pesada... jogaram o quê será aqui, chumbo? – Então ele saiu do beco em direção ao caminhão de lixo, e eu corri atrás dele. Ele virou a lata dentro do caminhão, foi quando ele arregalou os olhos e ficou paralisado. Parecia que ele tinha sido congelado no lugar.

— Doug, o que houve? – O motorista do caminhão gritou, olhando pelo retrovisor, mas sem sucesso, não obteve resposta. Ele desceu do caminhão e foi ver o que havia de errado. Chegando lá, ao olhar para a lata caída no chão, viu o sangue, e com medo, olhou para dentro do caminhão. O que ele viu, o fez vomitar, e Doug o acompanhou. Algum tempo depois, as sirenes se aproximavam, e eu vi me corpo ser levado pela perícia.

Agora estou aqui, no meu enterro. E o que eu mais temia, acabou acontecendo: eu estava errada, e isso custou a alegria de toda minha família. Estou condenada a uma vida – ou devo dizer morte? – de infortúnios na Terra. Prometo não trazer mais tristeza à vocês, meus amados. Pude perceber que Geovanna segurava a boneca que eu havia lhe deixado, enquanto as lágrimas incontroláveis desciam de seus olhinhos. Aquilo mexeu comigo profundamente. Se haver alguma forma de um espírito condenado morrer, eu o farei. Farei o possível e o impossível. Perdoem-me, meus amados. Adeus.

Escolhas


Ele abriu os olhos lentamente, o vinco se formando em sua testa indicava que ele estava confuso e não devia se lembrar de muita coisa. Ele se levantou com calma e olhou para suas mãos, que estavam translúcidas. Havia muitas pessoas ao seu redor, mas elas não olhavam para ele... olhavam para algo no chão, atrás dele. Seus olhos encontraram os meus, e por um segundo pude até ouvir as batidas do seu coração, que já não batia. Sua pele translúcida, seus cabelos sem a cor viva de antes e seus olhos totalmente sem brilho me imploravam para uma explicação. Apontei para o corpo que jazia no chão, atrás dele. Quando ele olhou e reconheceu quem era, parecia que tinha sido congelado. Aproximei-me dele com cuidado.
— O que... que aconteceu... comigo? – Gaguejou ele com a voz rouca, segurando o pânico para si mesmo.

— Você morreu meu querido. – Respondi da melhor forma que encontrei, e então pude ver as lágrimas rolando por sua face rígida. – Mas pode voltar a viver, se quiser.
— Você é Deus? – O vinco novamente se formou em sua testa. E eu ri. Garoto inocente. – Quem é você?

— Sou tudo, menos Deus. Eu nunca seria tão idiota. – As lágrimas secaram em seu rosto, ele olhava para o chão. – Você só tem que fazer uma escolha.

— Qual? – Percebi que ele achou tentadora a idéia de voltar a viver com apenas uma escolha.

— Escolha alguém para morrer no seu lugar. Simples. – Ele arregalou os olhos, mas começou a olhar à sua volta.
Seu olhar pairou sobre o mendigo passando fome, frio e medo na rua. “Ele não faria falta para ninguém”, pude ler seus pensamentos mesmo não tendo esse dom. Mas após algum tempo, seu olhar desviou-se para uma senhora que parecia já estar à beira da morte, pois tinha uma expressão triste ou de dor, e andava com dificuldade, e estava sozinha. Mas também não lhe interessou. Vi seu olhar então pousar sobre um cão velho e sarnento, de tão magro, as costelas quase lhe furavam a pele. E então ele olhou para mim.

— Decidiu-se meu jovem?
— Sim.

— Então quem ao nosso redor morrerá no seu lugar? – Perguntei, curioso.

— Ninguém.

— Se você não escolher ninguém, estará condenado à uma morte eterna no inferno.

— Não se preocupe, eu não irei para o inferno. Eu não morrerei. – Isso me deixou realmente confuso.

— Então quem morrerá?

— Você. – Soltei minha gargalhada mais escandalosa.

— Tolinho, eu não posso morrer, pois eu já estou morto!

— Seu corpo está morto. Seu espírito ainda está vivo. Eu quero que seu espírito morra no meu lugar.

— Você não pode fazer isso! – Senti uma leveza extraordinariamente incrível dominar-me.

— Olhe você mesmo. – Tentei segura-lo pelo braço, mas minha mão atravessou-o. Eu estava desaparecendo.


O garoto deitou-se novamente sobre seu corpo ensangüentado, enquanto os paramédicos chegavam. O demônio desaparecia, sufocando seu grito desesperador, os olhos esbugalhados, inconformado por ter sido enganado.
O corpo do garoto ao chão mexeu-se levemente, e então ele abriu apenas uma fresta de suas pálpebras e pôde ver a última coisa a desaparecer do demônio: o coração cinza, congelado e morto.
— É um milagre!! – Alguém exclamou no meio da multidão.