quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Escolhas


Ele abriu os olhos lentamente, o vinco se formando em sua testa indicava que ele estava confuso e não devia se lembrar de muita coisa. Ele se levantou com calma e olhou para suas mãos, que estavam translúcidas. Havia muitas pessoas ao seu redor, mas elas não olhavam para ele... olhavam para algo no chão, atrás dele. Seus olhos encontraram os meus, e por um segundo pude até ouvir as batidas do seu coração, que já não batia. Sua pele translúcida, seus cabelos sem a cor viva de antes e seus olhos totalmente sem brilho me imploravam para uma explicação. Apontei para o corpo que jazia no chão, atrás dele. Quando ele olhou e reconheceu quem era, parecia que tinha sido congelado. Aproximei-me dele com cuidado.
— O que... que aconteceu... comigo? – Gaguejou ele com a voz rouca, segurando o pânico para si mesmo.

— Você morreu meu querido. – Respondi da melhor forma que encontrei, e então pude ver as lágrimas rolando por sua face rígida. – Mas pode voltar a viver, se quiser.
— Você é Deus? – O vinco novamente se formou em sua testa. E eu ri. Garoto inocente. – Quem é você?

— Sou tudo, menos Deus. Eu nunca seria tão idiota. – As lágrimas secaram em seu rosto, ele olhava para o chão. – Você só tem que fazer uma escolha.

— Qual? – Percebi que ele achou tentadora a idéia de voltar a viver com apenas uma escolha.

— Escolha alguém para morrer no seu lugar. Simples. – Ele arregalou os olhos, mas começou a olhar à sua volta.
Seu olhar pairou sobre o mendigo passando fome, frio e medo na rua. “Ele não faria falta para ninguém”, pude ler seus pensamentos mesmo não tendo esse dom. Mas após algum tempo, seu olhar desviou-se para uma senhora que parecia já estar à beira da morte, pois tinha uma expressão triste ou de dor, e andava com dificuldade, e estava sozinha. Mas também não lhe interessou. Vi seu olhar então pousar sobre um cão velho e sarnento, de tão magro, as costelas quase lhe furavam a pele. E então ele olhou para mim.

— Decidiu-se meu jovem?
— Sim.

— Então quem ao nosso redor morrerá no seu lugar? – Perguntei, curioso.

— Ninguém.

— Se você não escolher ninguém, estará condenado à uma morte eterna no inferno.

— Não se preocupe, eu não irei para o inferno. Eu não morrerei. – Isso me deixou realmente confuso.

— Então quem morrerá?

— Você. – Soltei minha gargalhada mais escandalosa.

— Tolinho, eu não posso morrer, pois eu já estou morto!

— Seu corpo está morto. Seu espírito ainda está vivo. Eu quero que seu espírito morra no meu lugar.

— Você não pode fazer isso! – Senti uma leveza extraordinariamente incrível dominar-me.

— Olhe você mesmo. – Tentei segura-lo pelo braço, mas minha mão atravessou-o. Eu estava desaparecendo.


O garoto deitou-se novamente sobre seu corpo ensangüentado, enquanto os paramédicos chegavam. O demônio desaparecia, sufocando seu grito desesperador, os olhos esbugalhados, inconformado por ter sido enganado.
O corpo do garoto ao chão mexeu-se levemente, e então ele abriu apenas uma fresta de suas pálpebras e pôde ver a última coisa a desaparecer do demônio: o coração cinza, congelado e morto.
— É um milagre!! – Alguém exclamou no meio da multidão.

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